1 - INTRODUÇÃO
O
objeto do presente estudo é verificar se a edição das portarias denominadas
“toque de recolher” – que são atos administrativos, dotados de conteúdo
normativo limitadores de horário para crianças e adolescentes estarem em
espaços públicos ou pertencentes à comunidade – é possível no ordenamento
brasileiro, uma vez que estas são elaboradas por juízes que ocupam a vara da
infância e da juventude ou de quem estabelecer o Código de Organização
Judiciária onde não estiverem instaladas tais varas.
Estas
portarias são editadas com características de impessoalidade, generalidade e
abstração próprias das leis consideradas em sentido estrito.
A
portaria “toque de recolher” começou a ser implantada em Fernandópolis, Ilha
Solteira e Itapura, (SP), a partir de 2005, e determinou que pessoas com até 13
anos de idade, só poderiam permanecer nas ruas e locais públicos até as 20h30;
entre 14 e 15 anos, até as 22:00; entre 16 e 17 o horário máximo para se
recolher é até as 23:00h, tendo a mesma sancionado que o descumprimento poderá
levar a condenação à prestação de serviços públicos ou até o recolhimento a
Fundação Casa daquele município[1].
Ressalte-se
que hoje essa restrição está sendo feita por meio de leis municipais, como a
editada no município de Tubarão, no Estado de Santa Catarina e que foi
fulminada pelo Tribunal de Justiça catarinense, por padecer de vício de
inconstitucionalidade, conforme ementa:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE.
PRELIMINAR DE ILEGITIMIDADE DO COORDENADOR DO CECCON. REJEIÇÃO. RECONHECIDO O
VÍCIO FORMAL E MATERIAL DA LEI 3.379/2009, DO MUNICÍPIO DE TUBARÃO QUE
INSTITUIU O DENOMINADO TOQUE DE RECOLHER. VIOLAÇÃO AO DIREITO DE LOCOMOÇÃO
PREVISTO NO ART. 4º E INVASÃO DE COMPETÊNCIA PRIVATIVA DO GOVERNADOR DO ESTADO
ESTABELECIDA NO ART. 50, § 2, INCISO I E 108, TODOS DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL.
PRECEDENTE JURISPRUDENCIAL (ADIN N. 2010.060882-1). (Ação Direta de Inconstitucionalidade n.
2010.014498-7, de Tubarão, rel. Des. Lédio Rosa de Andrade) [2].
Nosso
estudo se restringirá às portarias emitidas pelos órgãos jurisdicionais.
Quanto
às portarias emitidas por juízos da infância e da juventude é interessante
frisar que o Tribunal de Justiça de São Paulo[3]
confirmou a validade da portaria “toque de recolher”, ao passo que o Tribunal
de Justiça do Tocantins[4]
refutou a validade da mesma. Igual entendimento pela invalidade da portaria
“toque de recolher” foi afirmado pelo Superior Tribunal de Justiça[5].
Não
há uma posição do tema pelo Supremo Tribunal Federal, contudo a partir da
jurisprudência aplicada a casos análogos, e com base em acordos e tratados
internacionais firmados pelo Brasil, e pelos princípios adotados pela
Constituição Federal tentaremos construir uma hermenêutica possível, em
confronto com o §2º do art. 149 da lei nº 8069/90, também denominado de
Estatuto da Criança e do Adolescente, que diz “as medidas adotadas na
conformidade deste artigo deverão ser fundamentadas, caso a caso, vedadas as
determinações de caráter geral”.
Os
que advogam favoravelmente a edição da medida constritiva utilizam como
fundamento os arts. 16, 18, 70, e 149 §2º[6]
do ECA. Os que defendem a impossibilidade da edição da portaria “toque de
recolher”, argumentam a seu favor o art. 2º e 5º, XV da CF e art. 15 do ECA[7],
conforme lição de Fernanda Andrade Almeida[8].
No
plano doutrinário utilizar-se-á em especial das obras de Hans-Georg Gadamer[9],
intitulada Verdade e Método, e da obra conjunta dos autores Laurence Tribe e
Michael Dorf [10]denominada
Hermenêutica Constitucional.
É
sabido que a Constituição Federal estatui diversas espécies de liberdade, como
por exemplo, a liberdade de expressão, religiosa, de ir, vir e ficar, de
associação, de reunião entre outras.
Aqui
será abordada a liberdade como elemento indispensável do conteúdo da dignidade
da pessoa humana, partindo-se da “perspectiva da pessoa humana como ser em
busca da autorrealização, responsável pela escolha dos meios aptos para
realizar suas potencialidades”.[11]
Em especial será enfatizado o direito de ir, vir e ficar.
Diante
do exposto, é constitucional a edição das portarias “toque de recolher”, pelos
órgãos jurisdicionais, atuando como legislador positivo? Há ou não violação a
dignidade da pessoa humana, quando se restringe o horário de permanência em
logradouros públicos e ou comunitários de crianças e adolescentes com bases em
critérios éticos?
2
– Dos tratados internacionais sobre direitos humanos e o tratamento dado pelo
STF em face da Constituição Federal.
Depois
da II Guerra Mundial, período em que a humanidade atônita assistiu e teve
conhecimento em toda a órbita terrestre dos horrores praticados durante o
período belicoso, diversos tratados internacionais tendo por objetivo a
proteção dos direitos humanos, foram editados. Nesse desiderato, foram
levantados os principais instrumentos internacionais ratificados pelo Brasil,
consoante lista trazida á baila pela profª. Flávia Piovesan: Carta das Nações
Unidas, Declaração Universal do Humanos (Artigo XIII – 1. Toda pessoa tem
direito à liberdade de locomoção e residência dentro das fronteiras de cada
Estado), Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (Artigo 12 - 1.
Toda pessoa que se encontre legalmente no território de um Estado terá o
direito de nele livremente circular e escolher sua residência), Pacto
Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Art. 15 -1. Os
Estados-partes no presente Pacto reconhecem a cada indivíduo o direito de: a)
Participar da vida cultural; b) Desfrutar o progresso científico e suas
aplicações. Convenção para a prevenção e Repressão do Crime de Genocídio,
Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou
Degradantes, Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação
contra a Mulher, Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de
Discriminação Racial e Convenção sobre os Direitos da Criança (Artigo 15 – 1.
Os Estados-partes reconhecem os direitos da criança à liberdade de associação e
à liberdade de reunião pacífica), (Artigo 31 – 1. Os Estados-partes reconhecem
o direito da criança ao descanso e ao lazer, ao divertimento e às atividades
recreativas próprias da idade, bem como à livre participação na vida cultural e
artística.). No plano Interamericano, a mais importante é a Convenção Americana
de Direitos Humanos, também conhecido como Pacto de San José da Costa Rica
(Artigo 22 – Direito de circulação e de residência 1 – Toda pessoa que se
encontre legalmente no território de um Estado tem o direito de nele livremente
circular e de nele residir, em conformidade com as disposições legais.)[12].
Não
obstante o texto maior dispor no art. 5º, §2 que: “Os direitos e garantias
previstos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos
princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República
Federativa do Brasil seja parte”, a verdade é que o STF deu ao tema uma
interpretação não condizente com a sua vocação de proteger os direitos humanos
e em especial a dignidade da pessoa humana, mantendo interpretação que vinha
desde 1977[13],
que equiparava os mesmos a legislação federal ordinária.
Para
que este entendimento sofresse modificação, foram necessárias três décadas, e a
mesmo só ocorreu após o advento da EC nº 45/2004, que atribui o status de
emenda constitucional as convenções e tratados internacionais sobre direitos
humanos desde que observado o mesmo rito para a aprovação das emendas constitucionais.
A controvérsia após esta norma surge: E no caso das normas não submetidas a
esse procedimento, qual seria a natureza jurídica que deveria ser dada as
mesmas? Manter a concepção de equipará-las às leis ordinárias, ou estar-se-ia
diante de uma nova espécie normativa?
Em
voto louvável, dando-se primazia a interpretação mais abrangente possível em
sede de direitos humanos, o Pretório Excelso, em trecho do voto do Min. Gilmar
Mendes, assentou que:
Desde
a adesão do Brasil, sem qualquer reserva, ao Pacto Internacional dos Direitos
Civis e Políticos (Art. 11) e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos –
Pacto de San José da Costa Rica (Art. 7º, 7), ambos no ano de 1992 não há mais
base legal para a prisão civil do depositário infiel, pois o caráter especial
desses diplomas internacionais sobre direitos humanos lhes reserva lugar
específico no ordenamento jurídico, estando abaixo da Constituição, porém acima
da legislação interna. O status
normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos
pelo Brasil, dessa forma, torna inaplicável a legislação infraconstitucional
com ele conflitante, seja ela posterior ou anterior ao ato de adesão.[14]
Com
isso, ficou estabelecido que ao lado das Emendas Constitucionais e das espécies
normativas elencadas no art. 59 da Carta Magna, a Excelsa Corte atribuiu aos
tratados e convenções sobre direitos humanos um status diferenciado, face ao
tratamento de matérias que acabam por importar no próprio cerne da dignidade da
pessoa humana, aventura primeira e última do direito, uma vez que o mesmo
tutela relações humanas, ainda que espraiada difusamente. Essa primazia da
norma supra legal sobre a legislação infraconstitucional significa que os
textos normativos existentes no Brasil não podem com eles conflitar, e cabe
ressalvar que não se trata de uma construção interpretativa arbitrária. Ao
contrário vem de encontro com o preconizado no Art. 1º, III, da CF, no qual o
Brasil adota como fundamento a dignidade da pessoa humana[15].
Essa mudança de postura é perfeitamente explicada pela teoria Gadameriana, que
propõe “um constante interpretar até que os conceitos prévios, ao longo da
comunicação sejam substituídos por outros conceitos mais novos, mais adequados”
[16].
Assim,
cabe ao intérprete cotejar a legislação infraconstitucional com os tratados
internacionais dos quais o Brasil faz parte e tenha aderido, não podendo os
mesmos serem olvidados.
3
– Das portarias “toque de recolher” e o posicionamento jurisprudencial do
Superior Tribunal de Justiça e de Tribunais Estaduais.
Como
já salientado na introdução, estas portarias, que receberam o nome de toque de
recolher, são atos de cunho normativo, editados pelo judiciário – juízos da
infância e da juventude ou de quem fizer as vezes nas comarcas onde não possuem
vara especializada – e que fixam horário para crianças e adolescentes
permanecerem em espaços públicos ou comunitários -, fixados com critérios
arbitrários, pois as diversas portarias emitidas não são coincidentes, ao
contrário, em sua maioria divergem uma das outras de acordo com a localidade e
a região em que são expedidas.
Os
juízes que a editam, usam ao seu favor o disposto no art. 149, §2º, do ECA,
dando-lhe interpretação elástica, para permitir a edição com caráter de
amplitude e generalidade própria das leis, quando o comando normativo permite
apenas edição de ato com caráter particular caso a caso.
O
fundamento constante para a edição da portaria, a míngua de qualquer disposição
constitucional, baseou-se em premissas, como afastar as crianças e adolescentes
de gravíssimas situações que comprometeriam sua vida e educação, que a sua
restrição contribuiria para a sua formação e as afastariam das drogas, entre
outras.
Não
cabe ao magistrado, enquanto hermeneuta e aplicador da lei ditar regra de
conduta com aporia em premissas éticas, pois na ética o que é bom para um, pode
ser péssimo para o outro.
Assim
ditar condutas, valores morais, modo de ser, não cabe a ninguém, a não ser ao
próprio indivíduo, enquanto espelho de uma dada realidade cultural, razão pela
qual adverte John Hart Ely,[17]:
Portanto,
não nos surpreendemos nem um pouco ao constatar que a história refuta a tese de
que o Judiciário “isento” tem sido capaz de falar em nome de nossos melhores
princípios morais.
Com
razão o ilustre professor americano. O magistrado não deve ditar regras de
comportamento formulado em juízo arbitrário e tolher a esfera de liberdade de
quem quer que seja, a não ser nas hipóteses legalmente previstas. Não é o
magistrado no exercício da jurisdição, o senhor da moral coletiva a ditar a
hora de recolhimento de pessoas livres, nem pode instituir sanção sob pena de
malferir o texto constitucional.
Fazendo coro ao que se afirma aqui,
em obra conjunta Mendes, Coelho e Branco[18],
reiteram que por estarem os direitos fundamentais na Constituição Federal, isso
faz com que os mesmos sejam obrigações, deveres, e sujeição dos poderes
constituídos aos direitos fundamentais, não podendo os mesmos serem tolhidos
arbitrariamente.
A
vinculação do legislador aos direitos fundamentais significa também, que mesmo
quando a Constituição entrega ao legislador a tarefa de restringir certos
direitos (por exemplo, o de livre exercício de profissão), o legislador haverá
de respeitar o núcleo essencial do direito, não estando legitimado a criar
condições desarrazoadas ou que tornem impraticável o direito previsto pelo
constituinte.
Estas
portarias, ainda que portadoras de boa-fé, são próprias de estado de exceção
onde grassa a anormalidade institucional ou então em países totalitários, que
não respeitam o mais básico princípio humanitário, que é o direito de ir, vir e
ficar como busca de seu desenvolvimento enquanto pessoa.
Nesse
diapasão, o prof. Luis Roberto Barroso[19]
averbera:
A
importância da Constituição – e do Judiciário como seu intérprete maior – não
pode suprimir, por evidente, a política, o governo da maioria nem o papel do
Legislativo. A Constituição não pode ser ubíqua. [...] Juízes e tribunais não
podem presumir demais de si próprios – como ninguém deve, aliás, nessa vida –
impondo suas escolhas, suas preferências, sua vontade. Só atuam, legitimamente,
quando sejam capazes de fundamentar racionalmente suas decisões, com base na
Constituição.
Chamado
a se manifestar quanto ao poder normativo dos magistrados, algumas decisões de
Tribunais de Justiça e do Superior Tribunal de Justiça, manifestaram pela sua
invalidade, conforme os seguintes julgados:
ESTATUTO
DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. HABEAS CORPUS. TOQUE DE RECOLHER. SUPERVENIÊNCIA
DO JULGAMENTO DO MÉRITO. SUPERAÇÃO DA SÚMULA 691/STF. NORMA DE CARÁTER GENÉRICO
E ABSTRATO. ILEGALIDADE.
ORDEM
CONCEDIDA.
1.
Trata-se de Habeas Corpus Coletivo "em favor das crianças e adolescentes
domiciliados ou que se encontrem em caráter transitório dentro dos limites da
Comarca de Cajuru-SP" contra decisão liminar em idêntico remédio proferida
pela Câmara Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
2.
Narra-se que a Juíza da Vara de Infância e Juventude de Cajuru editou a
Portaria 01/2011, que criaria um "toque de recolher", correspondente
à determinação de recolhimento, nas ruas, de crianças e adolescentes
desacompanhados dos pais ou responsáveis: a) após as 23 horas, b) em locais
próximos a prostíbulos e pontos de vendas de drogas e c) na companhia de
adultos que estejam consumindo bebidas alcoólicas. A mencionada portaria também
determina o recolhimento dos menores que, mesmo acompanhados de seus pais ou
responsáveis, sejam flagrados consumindo álcool ou estejam na presença de
adultos que estejam usando entorpecentes.
3.
O primeiro HC, impetrado no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, teve sua liminar indeferida e,
posteriormente, foi rejeitado pelo mérito.
4.
Preliminarmente, "o óbice da Súmula 691 do STF resta superado se
comprovada a superveniência de julgamento do mérito do habeas corpus originário
e o acórdão proferido contiver fundamentação que, em contraposição ao exposto
na impetração, faz suficientemente as vezes de ato coator (...)" (HC
144.104/SP, Rel. Min. Jorge Mussi, DJe 2.8.2010; cfr. Ainda HC 68.706/MS, Sexta
Turma, Rel. Ministra Maria Thereza de
Assis Moura, DJe 17.8.2009 e HC 103.742/SP, Quinta Turma, Rel. Min. Jorge
Mussi, DJe 7.12.2009).
5.
No mérito, o exame dos consideranda da Portaria 01/2011 revela preocupação
genérica, expressa a partir do "número de denúncias formais e informais
sobre situações de risco de crianças e adolescentes pela cidade,
especificamente daqueles que permanecem nas ruas durante a noite e madrugada,
expostos, entre outros, ao oferecimento de drogas ilícitas, prostituição,
vandalismos e à própria influência deletéria de pessoas voltadas à prática de
crimes".
6.
A despeito das legítimas preocupações da autoridade coatora com as
contribuições necessárias do Poder Judiciário para a garantia de dignidade, de
proteção integral e de direitos fundamentais da criança e do adolescente, é
preciso delimitar o poder normativo da autoridade judiciária estabelecido pelo
Estatuto da Criança e do Adolescente, em cotejo com a competência do Poder
Legislativo sobre a matéria.
7.
A portaria em questão ultrapassou os limites dos poderes normativos previstos
no art. 149 do ECA. "Ela contém normas de caráter geral e abstrato, a
vigorar por prazo indeterminado, a respeito de condutas a serem observadas por
pais, pelos menores, acompanhados ou não, e por terceiros, sob cominação de
penalidades nela estabelecidas" (REsp 1046350/RJ, Primeira Turma, Rel.
Ministro Teori Albino Zavascki, DJe 24.9.2009).
8.
Habeas Corpus concedido para declarar a ilegalidade da Portaria 01/2011 da Vara
da Infância e Juventude da Comarca de Cajuru[20].
ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. PODER NORMATIVO DA AUTORIDADE
JUDICIÁRIA. LIMITES. LEI 8.069⁄90, ART. 149.
1. Ao contrário do
regime estabelecido pelo revogado Código de Menores (Lei 6.697⁄79), que
atribuía à autoridade judiciária competência para, mediante portaria ou
provimento, editar normas "de ordem geral, que, ao seu prudente
arbítrio, se demonstrarem necessárias à assistência, proteção e vigilância
ao menor" (art. 8º), atualmente é bem mais restrito esse domínio
normativo. Nos termos do art. 149 do Estatuto da Criança e do Adolescente
(Lei 8.069⁄90), a autoridade judiciária pode disciplinar, por portaria,
"a entrada epermanência de criança ou adolescente, desacompanhada dos pais
ou responsável" nos locais e eventos discriminados no inciso I,
devendo essas medidas "ser fundamentadas, caso a caso, vedadas
asdeterminações de caráter geral" (§ 2º). É evidente, portanto,
o propósito do legislador de, por um lado, enfatizar a
responsabilidade dos pais de, no exercício do seu poder familiar, zelar
pela guarda e proteção dos menores em suas atividades do dia a dia, e, por
outro, preservar a competência do Poder Legislativo na edição de normas
de conduta de caráter geral e abstrato.
Outro
também não foi o entendimento firmado pelo Tribunal de Justiça do Tocantins,
conforme podemos averiguar:
EMENTA:
MANDADO DE SEGURANÇA – ESTAUTO DA
CRIANÇA E ADOLESCENTE – APLICAÇÃO DO ARTIGO 149 – LIMITES – PODER NORMATIVO DA
AUTORIDADE JUDICIÁRIA – NORMA DE CARÁTER GENÉRICO – PORTARIA ANULADA –
PRECEDENTES DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA - ORDEM CONDEDIDA.
A jurisprudência moderna
considera abusiva a edição de Portarias que contenham normas de caráter geral e
abstrato e ultrapassem os limites normativos previstos no artigo 149 do
Estatuto da Criança e Adolescente.
O propósito do legislador é enfatizar a
responsabilidade dos pais de, no exercício do seu poder familiar, zelar pela
guarda e proteção dos menores em suas atividades do dia a dia, e preservar a
competência do Poder Legislativo na edição de normas de conduta de caráter
geral e abstrato.
A despeito das legítimas preocupações da
autoridade coatora com as contribuições necessárias do Poder Judiciário para a
garantia de dignidade, de proteção integral e de direitos fundamentais da
criança e do adolescente, é preciso delimitar o poder normativo da autoridade
judiciária estabelecido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, em cotejo
com a competência do Poder Legislativo sobre a matéria. A portaria em questão ultrapassou os limites
dos poderes normativos previstos no art. 149 do ECA, por conter normas de caráter geral e abstrato, a
vigorar por prazo indeterminado, a respeito de condutas a serem observadas por
pais, pelos menores, acompanhados ou não, e por terceiros, sob cominação de penalidades nela estabelecidas [22].
Nas
decisões trazidas ao presente artigo, verificamos que a análise passou apenas
no âmbito infraconstitucional, sem atacar o cerne do problema que são os
limites e a legitimidade de atuação dos juízes em editar portarias com conteúdo
normativo genérico, ou seja, não adentrou-se na hermenêutica constitucional
possível, ante tais restrições.
Não
desconhecemos a posição do Tribunal de Justiça de São Paulo, que em julgamento
proferido pela Corte Especial, sequer conheceu do Habeas Corpus impetrado
contra a portaria “toque de recolher” do município de Fernandópolis, ao
argumento simplista de que a medida manejada não era cabível[23].
4
– Da possibilidade de restrição de direitos fundamentais na Constituição
Federal.
A Constituição Federal estatuiu no art. 136, o
Estado de Defesa e no art. 137 o Estado de Sítio, para garantir a estabilidade
constitucional do Estado Brasileiro em momentos de grave instabilidade
institucional. É interessante notar que em ambos os casos o Congresso Nacional
terá de se manifestar decidindo por maioria absoluta.
Temos
aqui a participação do Parlamento Brasileiro como garante quanto às medidas
extremas decretadas pelo presidente da República quanto a sua necessidade por
importar em restrições a direitos fundamentais.
Logo, conclui-se que somente nestas
hipóteses comporta-se medidas excepcionais fora da normalidade institucional,
pois o que está em jogo é a sobrevivência da Federação Brasileira.
Não se afirma aqui que não há tensão
ou colisão entre princípios da mesma significância para a dignidade da pessoa
humana, tendo que não raro, haver a opção entre um e outro, através de um juízo
de ponderação. O que não pode é um direito que diz respeito ao desenvolvimento
da pessoa humana, ligado diretamente à dignidade da pessoa humana, como a
liberdade ambulatorial, ser suprimida em ato genérico de cunho administrativo
baixado por magistrados.
5
– As gerações de direitos e a liberdade
A liberdade permeia a historia da
humanidade, confundindo-se com ela mesma.
Na
Bíblia há diversas passagens da luta do povo hebreu em busca da sonhada
liberdade desde que partiu do Egito sob o comando de Moisés. Na mitologia grega
não é diferente. Temos o sonho de Ícaro, que tenta voar. A França legou a
humanidade os três pilares básicos da Revolução de 1789 a liberdade, ao lado da
igualdade e fraternidade. Com fundamento nesse trinômio, procura-se situar
historicamente a evolução dos direitos fundamentais, dividindo-se em direitos
de primeira geração (liberdade), segunda geração (igualdade) e de terceira
geração (fraternidade), este último com titularidade difusa.
Necessário
uma correção de rota. Os direitos não são isolados. Não há gerações de direitos
como compartimentos estanques. Eles se confundem ao longo da história,
entrelaçando-se uns aos outros, devendo-se entender este recorte metodológico
que inclusive é aceito pelo pretório excelso como caráter didático[24].
Neste
diapasão, assiste razão ao insigne Antônio Augusto Cançado Trindade, que na
apresentação da obra Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional,
de autoria da professora Flávia Piovesan, defende[25]:
[...]
à fantasia das chamadas “gerações de direitos, a qual corresponde a uma visão
atomizada ou fragmentada destes últimos no tempo. A noção simplista das
chamadas “gerações de direitos”, histórica e juridicamente infundada, tem
prestado um desserviço ao pensamento mais lúcido a inspirar a evolução dos
direitos internacional dos direitos humanos. Distintamente do que a infeliz
invocação da imagem analógica da “sucessão generacional” parecia supor, os
direitos humanos não se “sucedem” ou “substituem” uns aos outros, mas antes se
expandem, se acumulam e se fortalecem, interagindo direitos individuais e
sociais [...]
Outra não é a lição de Branco e Mendes:
Essa
distinção entre gerações dos direitos fundamentais é estabelecida apenas com o
propósito de situar os diferentes momentos em que esses grupos de direitos
surgem como reivindicações acolhidas pela ordem jurídica. Deve-se ter presente,
entretanto, que falar em sucessão de gerações não significa dizer que os
direitos previstos num momento tenham sido suplantados por aqueles surgidos em
instante seguinte[26].
A liberdade alcançou o status de
dignidade constitucional, com suas limitações impostas apenas e tão somente
pela Constituição. No Brasil não é diferente, consoante o art. 5º, caput da
Carta Republicana:
Todos
são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros
residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.
Não obstante a isso, a Constituição
vai mais além para expressar em seu inciso XV, art. 5º, que "é livre a
locomoção no território nacional em tempo de paz”.
A Lei Fundamental Alemã em seu art. 1º,
n.1, diz que “A dignidade da pessoa humana é inviolável. Respeitá-la e
protegê-la é obrigação de todos os Poderes estatais”. Do mesmo teor, e erigindo
como fundamento da República Brasileira, o art. 1º, inciso III, elege a
dignidade da pessoa humana, como um dos seus fundamentos. Ressalte-se, que esta
eleição não é arbitrária, fruto do acaso ou mera retórica. Ela vale para os
três poderes.
Nesse diapasão todo ser
humano, tem para si e contra o Estado um direito fundamental de defesa, que
nada mais é que exigir que os poderes estatais não pratiquem atos coativos
descabidos, ou seja, não viole a esfera jurídica de autodeterminação das
pessoas baseados em premissas éticas e morais individual de quem emana o
comando normativo. Por todos, o jurista português Canotilho ensina: “ [...] um
direito fundamental de defesa é um direito cujo conteúdo se traduz
fundamentalmente em exigir que o próprio Estado (poderes públicos) se abstenha
de intervenções coactivas na esfera jurídica do particular”[27].
Desta forma há um limite no
exercício da Jurisdição, e porque não dizer, também ao Legislativo e ao
Executivo na restrição de direitos básicos do ser humano. Se a lei não proíbe,
não pode o intérprete sobre uma falsa premissa de conteúdo moralizador criar
regras que extirpam direitos e garantias fundamentais encartado no Texto Maior.
Mesmo que haja um clamor social, não é papel da jurisdição exceder os limites
compatíveis com a delegação dada pelo Constituinte Originário no desempenho de
suas funções. Neste passo a interpretação extensiva restritiva de direitos e
garantias fundamentais não pode encontrar guarida. Não há interpretação
possível para isso.
A fundamentação para uma
interpretação não pode ter como corolário, ao menos no âmbito do exercício da
jurisdição, os anseios populares, o desejo da imprensa ou até mesmo suas vontades.
Este não é o papel que lhe é reservado na Constituição. Sua discricionariedade
encerra-se dentro do espaço normativo previsto na lei.
Isso não transforma o juiz em um
“boca da lei”. Ao contrário. O campo aberto para interpretar continua o mesmo,
mas partindo da hermenêutica possível em face da Constituição Federal.
Interpretação sem fundamentação não é aplicação do direito calcado na segurança
jurídica. É arbítrio dispensável. É ato de tirania não condizente com nossa
realidade histórica atual.
Gadamer observa que:
A
tarefa da interpretação consiste em
concretizar a lei em cada caso, ou seja, é a tarefa da aplicação. A complementação produtiva do direito que se dá aí está
obviamente reservada ao juiz, mas este encontra-se sujeito à lei como qualquer
outro membro da comunidade jurídica. A ideia de uma ordem judicial implica que
a sentença do juiz não surja de arbitrariedades imprevisíveis, mas de uma ponderação
justa do conjunto [...]. Entre a hermenenêutica jurídica e a dogmática jurídica
existe pois, uma relação essencial, na qual a hermenêutica detém a primazia[28].
6
– O STF e a hermenêutica da sua jurisdição em sede de direitos fundamentais
A
Suprema Corte Brasileira tem como viés proteger e dar guarida aos direitos
fundamentais expressos ou não no texto constitucional, não admitindo restrição
a estes direitos quando os mesmos digam respeito à dignidade da pessoa humana,
inclusive vedando diversas atuações indevidas dos poderes legislativo e
executivo quando cometem excessos.
Entendo
que o catálogo dos direitos fundamentais não obstante possuir aspecto
procedimentalista, tem como característica mais marcante ser dotado de conteúdo
substancialista, ou seja, que diz respeito ao próprio ser humano, considerado
este como possuidor de um conjunto de atributos e possibilidades aptos para o
seu desenvolvimento globalmente considerado, devendo o STF abster-se da
interpretação originalista da constituição, expressão que advém do direito
americano e que em síntese - busca na intenção do poder constituinte originário
a interpretação do texto. Advogam no sentido aqui proposto, Laurence Tribe e
Michael Dorf[29] e
Hans-Georg Gadamer, que defende a distância temporal, como meio para resolver
os falsos preconceitos que produzem equívocos hermenêuticos, como os praticados
pelos juízos da infância e adolescência na edição das portarias “toque de
recolher”:
A
distância temporal que possibilita essa filtragem não tem uma dimensão fechada
e concluída, mas está ela mesma em constante movimento e expansão. A o lado do
aspecto negativo da filtragem operada pela distância temporal, aparece,
simultaneamente, seu aspecto positivo para a compreensão. Essa distância, além
de eliminar os preconceitos de natureza particular, permite o surgimento
daqueles que levam a uma compreensão correta[30].
Tribe e Dorf, apontam ainda que uma
Constituição não deve ser lida sob a forma de des-integração e
hiper-integração. Ensinam os autores que a primeira seria ignorar o todo da
Constituição, interpretando a por partes, e a última seria a sua leitura
global, desprezando que a mesma é formada por diferentes partes.[31]
Assim, a Constituição não é um texto único, ao contrário, é plural,
diversificado, formada por diversas correntes abertas ao debate, ou como
afirmam os autores há pouco citado “Essa Constituição única não pode ser
confundida com a expressão singular de uma única ideia”[32].
Neste
ponto, a jurisprudência do Pretório Excelso é firme em negar validade a tais
atos, não importando a natureza jurídica que se queira dar a eles, no caso das
portarias “toque de recolher” se ato judicial ou administrativo, pois o que
está em jogo é o direito fundamental de ir e vir e permanecer, sem a
observância do devido processo legal e com esteio simplesmente em fatores
éticos.
Neste sentido leciona Fábio Medina Osório,
verbis:
Os
tribunais superiores deixam claros seus posicionamentos: o princípio da
legalidade tem validade formal e material e alcança o Estado, limitando-o, no
tocante ao exercício de sua pretensão punitiva, seja na seara judicial, seja na
esfera administrativa. Mas não se esgota aí o raio de abrangência da legalidade
derivada do Estado de Direito. Mesmo nas hipóteses em que o Estado, sem
munir-se do poder sancionador, venha a exercer poder de polícia ou impor
medidas restritivas de liberdades individuais, é imperativa a obediência ao
princípio da legalidade[33].
Para tanto, trago
julgado exarado pelo plenário da Suprema Corte, que confirma o posicionamento
acima afirmado.
A
reserva de lei constitui postulado revestido de função excludente, de caráter
negativo, pois veda, nas matérias a ela sujeitas, quaisquer intervenções
normativas, a título primário, de órgãos estatais não legislativos. Essa cláusula
constitucional, por sua vez, projeta-se em uma dimensão positiva, eis que a sua incidência reforça o princípio, que
fundado na autoridade da Constituição, impõe, à Administração e à jurisdição, a
necessária submissão aos comandos estatais emanados, exclusivamente, do
legislador. Não cabe, ao Poder Judiciário, em tema regido pelo postulado
constitucional da reserva de lei, atuar na anômala condição de legislador
positivo (RTJ 126/48 – RTJ 143/57 – RTJ 146/461-462 – RTJ 153/765, vg), para,
em assim agindo, proceder à imposição de seus próprios critérios, afastando,
desse modo, os fatores que, no âmbito de nosso sistema constitucional, só podem
ser legitimamente definidos pelo Parlamento. É que, se tal fosse possível, o
Poder Judiciário – que não dispõe de função legislativa – passaria a
desempenhar atribuição que lhe é institucionalmente estranha (a de legislador
positivo), usurpando, desse modo, no contexto de um sistema de poderes
essencialmente limitados, competência que não lhe pertence, com evidente
transgressão ao princípio constitucional da separação de poderes[34].
É interessante frisar, que não
obstante o STF não tenha se pronunciado sobre as portarias “toque de recolher”,
em diversos julgados, manifestou-se pela plena liberdade para as crianças e
adolescentes como meio para seu desenvolvimento, devendo ocorrer a integração
com o espaço comunitário e familiar, não admitindo a restrição da liberdade
como regra, e sim apenas como exceção e diante de particularidades do caso
concreto, conforme podemos observar:
ESTATUTO DA CRIANÇA E DO
ADOLESCENTE - INTERPRETAÇÃO. O Estatuto da Criança e do Adolescente há de ser
interpretado dando-se ênfase ao objetivo visado, ou seja, a proteção e a
integração do menor no convívio familiar e comunitário, preservando-se-lhe,
tanto quanto possível, a liberdade. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE -
SEGREGAÇÃO. O ato de segregação, projetando-se no tempo medida de internação do
menor, surge excepcional, somente se fazendo alicerçado uma vez atendidos os
requisitos do artigo 121 da Lei nº 8.069/90, não cabendo a indeterminação de
prazo[35].
HABEAS
CORPUS. ESTATUDO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. MEDIDA SÓCIO-EDUCATIVA. ART. 120
DA LEI 8.069/1990. MENOR SOB REGIME DE SEMILIBERDADE. RESTRIÇÃO DE VISITAS À
FAMÍLIA. O art. 120 do ECA possibilita a prática de atividades externas pelo
menor sob o regime de semiliberdade, sem necessidade de autorização judicial. A
restrição imposta pelo magistrado, no sentido de que as visitas aos familiares
devam ser realizadas de maneira progressiva e condicionada, constitui
constrangimento ilegal, especialmente quando desprovida de fundamentação. O
regime de semiliberdade constitui típica medida de caráter sócio-educativo,
devendo ser priorizado o fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários.
Inteligência dos arts. 19 da Lei 8.069/1990 e 227 da Constituição Federal.
Ordem concedida[36].
EMENTA: HABEAS CORPUS. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE.
MEDIDA SOCIOEDUCATIVA DE SEMILIBERDADE. LIMITE MÁXIMO DE DURAÇÃO. RESTRIÇÃO À
REALIZAÇÃO DE ATIVIDADES EXTERNAS E IMPOSIÇÃO DE CONDIÇÕES RELATIVAS AO BOM
COMPORTAMENTO DO PACIENTE PARA VISITAÇÃO À FAMÍLIA. IMPOSSIBILIDADE. ARTIGO 227
DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. Ressalvadas as hipóteses arroladas nos artigos
121, § 3º e 122, § 1º, o Estatuto da Criança e do Adolescente não estipula
limite máximo de duração da medida socioeducativa de semiliberdade. Resulta daí
que, por remissão à aplicação do dispositivo concernente à internação, o limite
temporal da semiliberdade coincide com a data em que o menor infrator completar
vinte e um anos [art. 120, § 2º]. 2. O artigo 120 da Lei n. 8.069/90 garante a
realização de atividades externas independentemente de autorização judicial. 3.
O Estado tem o dever de assegurar à criança e ao adolescente o direito à convivência
familiar [artigo 227, caput, da Constituição do Brasil]. O objetivo maior da
Lei n. 8.069/90 é a proteção integral à criança e ao adolescente, aí
compreendida a participação na vida familiar e comunitária. 4. Restrições a
essas garantias somente são possíveis em situações extremas, decretadas com
cautela em decisões fundamentadas, o que no caso não se dá. Ordem parcialmente
concedida para permitir ao paciente a realização de atividades externas e
visitas à família sem a imposição de qualquer condição pelo Juízo da Vara da
Infância e Juventude[37].
Desta forma, resta claro que não
obstante a Corte Maior ainda ter enfrentado o tema, os julgados trazidos à
colação e no rastro da melhor doutrina construtiva hermenêutica, as portarias
“toque de recolher”, são inadmissíveis no ordenamento pátrio, por ferir a
independência dos poderes, a dignidade da pessoa humana, em especial a da
criança e do adolescente em formação, que acaba por ter tolhida a sua liberdade
sem nenhum parâmetro plausível, ou como ensina Gadamer, a interpretação da lei
não é um ato arbitrário[38].
7 – Conclusão
Não cabe ao intérprete extrapolar os
lindes do que emana do comando normativo supremo, no caso a Constituição
Federal, para fazer com que suas ideias sejam as melhores e aplicá-las a uma dada
sociedade. Isso importa dizer que as portarias “toque de recolher”,
correspondem a um nada jurídico, pois emanada de autoridade que não detém
competência legiferante, sendo inconstitucionais.
Os tratados internacionais dos quais
o Brasil fazem parte e versam sobre Direitos Humanos, devem ser levados em
conta na hora da interpretação, pois se não recepcionados como emenda
constitucional, os mesmos estão hierarquicamente acima da legislação
infraconstitucional.
À guisa de proposta, seria
interessante o Procurador-Geral da República ajuizar uma ADI, para que o
Supremo Tribunal, desse interpretação conforme quanto aos limites e
possibilidades de magistrados em editar atos abstratos e genéricos para
crianças e adolescentes, em especial os que tolhem a liberdade.
O espaço interpretativo possível, ou
aberto, não enseja em arbítrio. Antes encontra limites e só se fundamenta com
validade se ancorado na Constituição Federal.
Dessa forma, a Constituição é um
texto único, más não comporta uma ideia única, ao contrário, é aberto a
pluralidades, visando respeitar a dignidade da pessoa humana consoante Laurence
Tribe e Michael Dorf. Assim, as portarias “toque de recolher” violam a
liberdade, e por consequência a dignidade da pessoa humana.
E a hermenêutica não comporta um
círculo fechado em si mesmo. Ao contrário, há um espaço aberto para superar
entendimentos que se perderam no tempo, sempre num crescente valorativo, como
ensina Gadamer.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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[2] <http://app.tjsc.jus.br/jurisprudencia/busca.do>.
Acesso em 15 ago. 2012.
[3]
TJSP. HC nº 0112189-38.2011.8.26.0000, Rel. Desª. Maria Olívia Alves, Corte
Especial, julgado em 22.08.2011.
[4] TJTO. Rel. Moura Filho Mandado de
Segurança nº 5001539-06.2011.827.0000.
2ª Câmara Cível, julgado em 02/05/2012.
[5]
STJ. HC 207.720/SP, Rel. Min. Herman Benjamin, 2ª Turma, julgado em
01/12/2011, DJe 23/02/2012
[6] Art.16 da lei 8.069: O Direito à liberdade
compreende os seguintes aspectos: I – ir, vir, estar nos logradouros públicos e
espaços comunitários, ressalvadas as restrições legais (..omissis); Art.18. É
dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a
salvo de qualquer tramento desumano,
violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor;Art.70. É dever de todos
prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da crianaça e do adolescente.
; Art.149 Compete à autoridade judiciária disciplinar, através de portaria, ou
autorizar, mediante alvará “...omisssi”§2º A s medidas adotadas na conformidade
deste artigo deverão ser fundamentadas, caso a caso, vedadas as determinações
de caráter geral. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8069Compilado.htm>
Acesso em 12 de jun. de 2012.
[7] Art. 2º da CF:São Poderes da
União independentes, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o
Executivo e o Judiciário; Art. 5º, XV , é livre a locomoção no território
nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele
entrar, permanecer ou dele sair com seus bens. Art. 15 do ECA: A criança e o adolescente têm direito à
liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de
desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos
na Constituição e nas leis.
[8] Almeida, F.A. Juscoronelismo ou
judicialização do cotidiano? O toque de recolher para menores em cidades do
interior do Brasil: XIX Encontro Nacional do CONPEDI, 2010, Fortaleza, p.
1296-1311.
[9] Gadamer, H-G. Verdade e método
I. Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Trad. Flávio Paulo Meurer 11. ed : Vozes, Petrópolis, 2011.
[10]
Tribe, L; Dorf, M.
Hermenêutica Constitucional. Trad. Amarílis de Sousa Birchal. Belo Horizonte:
Del Rey, 2007.
[11] Mendes, Gilmar Ferreira; Branco,
Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 7. ed. São Paulo: Saraiva,
2012, p. 298.
[12] Piovesan, Flávia. Direitos
Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 7. ed: Saraiva, São Paulo , 2006,
p. 345-466.
[13] STF.RE 80004/SE. Rel. Min.
Xavier de Albuquerque, julgado em 01/06.1977. DJ de 29.12.1977
[14] STF. RE 466.343, Rel. Min. Cezar
Peluso, voto do Min. Gilmar Mendes, julgado em 31-2-2008, Plenário, DJE, de 5-6-2009.
[15] Brasil, Constituição Federal. 34ª
ed – Brasília: Câmara dos Deputados, Câmara, 2011.
[16] Bonfim, S. Vinícius. Gadamer e a
experiência hermenêutica. Revista CEJ, Brasília, Ano XIV, nº 49, pág. 76,
abr./jun. 2010.
[17] Ely, John. Hart. Democracia e
Desconfiança Uma teoria do controle judicial de constitucionalidade. Trad. Juliana
Lemos. Martins Fontes, São Paulo, 2010,
p. 76.
[18] Mendes, Gilmar Ferreira., Coelho;.Inocêncio
Mártires., Branco. Paulo Gustavo Gonet. Hermenêutica Constitucional e Direitos
Fundamentais. Brasília Jurídica, 2ª
tiragem, Brasília, 2002, p. 127.
[19]
Barroso, Luis Roberto Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade
Democrática. Disponível<http://www.oab.org.br/editora/revista/users/revista/1235066670174218181901.pdf > Acesso em 04 jul. de 2012.
[20]STJ. HC 207.720/SP, Rel. Ministro Herman Benjamin,
2ª Turma, julgado em 01/12/2011, DJE 23/02/2012.
[21]
STJ. REsp nº 1.046.030/RJ. Rel.
Min. Teori Albino Zavascki, julgado em 15-09-2009, DJE de 24-09-2009.
[22]
TJTO. Rel. Moura Filho Mandado de Segurança nº 5001539-06.2011.827.0000, julgado
em 02/05/2012, 2ª Câmara Cível.
[23]
STJ. HC 207.720/SP, Rel. Ministro Herman Benjamin, 2ª Turma, julgado em
01/12/2011, DJE 23/02/2012.
[24] STF. RE 134.297, Rel. Min. Celso
de Mello, DJ de 22-9-1995.
[26] Mendes, Gilmar Ferreira; Branco,
Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 7. ed. São Paulo:
Saraiva, 2012, p. 156.
[27] Canotilho, J.J.G.. Estudos sobre
direitos fundamentais. Coimbra: Coimbra, 2004, p. 76.
[28]
Gadamer. p. 432-433
[29]
Ob,
cit.
[31] Tribe e Dorf, p.20.
[32] Tribe e Dord,
p. 45.
[33] Osorio, Fabio Medina. Direitos
Imanentes ao Devido Processo Legal sancionador na constituição de 1988.
Constituição Federal Avanços, contribuições e modificações no professo
democrático brasileiro. Org. Ives Gandra Martins e Francisco Rezek. São
Paulo:Ed. RT:CEU – Centro de Extensão Universitária.2008.
[34] STF. MS 22.690, Rel. Min. Celso
de Mello, julgamento em 17-4-1997, Plenário, DJ de 7-1-.2006.
[35] STF. HC 88473, Rel. Min. Marco
Aurélio, julgado em 03/06/2008, 1ª Turma, DJ de 05-09-2008.
[37] STF. HC 98518, Rel. Min. Eros Grau, 2ª Turma,
julgado em 25-05-2010, publicado no DJE 10-06-2010
[38]
Gadamer. p. 430.
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